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João Marques Ramalheira
In "Canção do Mar"
Falar de Ílhavo, é falar do mar - do seu sussurro, da sua canção cujo eco se repercute pelos séculos além. Ílhavo e o mar andam tão unidos como o perfume às rosas e a inquietação à alma humana!

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O 180 da Rua da Boavista

Saudades da minha Rua

Texto de Maria Helena Pessoa

Chamaram-lhe Direita, embora a sua configuração não correspondesse ao nome. Mas acho que em todas as vilas e não só, há sempre uma rua Direita, a que ia dar aos Paços do Concelho.

O seu piso era de macadame, uma espécie de terra batida, dura. O seu inventor foi um engenheiro escocês de nome John Loudon McAdam. Daqui o nome em sua homenagem.

De ambos os lados havia um rego que, quando chovia, era o rio ideal para pôrmos os barquinhos feitos de casqueira e com uma vela de papel. Quantos naufrágios, meu Deus! Nas suas margens cresciam umas ervinhas de raíz fasciculada que, depois de sacudida a terra, eram usadas para os rapazes e não só, jogarem às “emendinhas”. Era ver quem conseguia segurar a erva mais tempo no pé, chutando-a.

O Largo do Rossio, mesmo aqui à minha frente, agora Largo da Capela, era o local preferido para esse jogo. Recordo o meu irmão Armindo Júlio, o José Júlio Mangueiro, o Henrique Cardoso, o Castro e tantos outros. Sempre fui uma Maria- rapaz (que até subia ao depósito das águas, por uma escada de carpinteiro), mas não ganhava nome nesse jogo. A par desse jogo das emendinhas, que tantas ínguas causou aos rapazes, havia o do botão, atirado à parede. Eram os botões das ceroulas, os que mais saltavam. Pobres dos velhotes que tinham que andar “arejados”, sem querer.

A Rua Direita era, de todas, a mais importante. Havia muito comércio.

Subindo a rua, pelo lado esquerdo, fazendo esquina com a Rua de Camões, o Café Central marcava pela sua fama. Tinha a alcunha do “cuspo”. Os frequentadores deitavam mais para fora, do que metiam para dentro. Era seu proprietário o Srº. Corujo, casado com a Srª Nautília Balau. Constava-se que este senhor teria falecido com um ataque cardíaco, quando, ao chegar ao café, viu um “Judas” igualzinho a ele, baixo, forte, manco e com uma bandeja na mão. Estávamos na Páscoa e aos rapazes nada se lhes escapava. Só não conseguiram transmitir ao boneco, o ar de paciência que o senhor tinha, ao aturar os fregueses mais inconvenientes.

Continuando rua acima, estava a sapataria do Srº Carlos Teles, pouco simpático para os clientes e muito rabugento.

De seguida, a padaria Durão, com a Srª Glória, sempre ao balcão. Cabelos lisos, risco ao meio, forte, respirando bondade por toda ela. Emprestou-me livros, quando entrei no Magistério, com a filha Maria Cândida, minha amiga (já tinha feito o seu curso, também em Coimbra).

Depois a Tricana, loja do Srº Silvério Teles. Vendia fazendas. Tinha um filho, o Bento, que mais não fazia do que embrulhar os artigos, isto é, as fazendas. Era alto, sempre com o olhar fixo no vazio. Não falava. Muitas vezes foi confundido com um manequim, tal a sua postura.

Acima, a casa da profª. D. Alice que deu uma bôla à minha mãe, por ela não conhecer um t. Era casada com um senhor duma serra, que eu desconheço. Na loja de grande balcão corrido, vendia louças de barro preto e queijos. Era muito “acomodado”. Entre outras filhas, teve a célebre Alicinha, que fez nascer meio Ílhavo. O meu irmão Armindo Júlio, nasceu a 23-03-1930 e foi o primeiro bebé, que ela trouxe a ver a luz do dia.

Sempre subindo a rua, pelo lado esquerdo, ficava o consultório do Dr. Paulo Ramalheira, dentista. Hoje, o local da casa está transformado num parque de estacionamento. Era um bom edifício, onde esteve aquartelada a P.S.P..

Onde está implantada a sede do Illiabum Clube e a Segurança Social, era o consultório do Dr. Carvalho. Tinha uma criada, a Srª Eva, sempre fardada de preto, com aventais de bordado branco e um cão pequeno, de pelo curto preto e malhas brancas o Miki. O Srº Drº Carvalho, de clínica geral, era pai do Prof. Dr. Armando Carvalho, professor da Universidade de Coimbra e da Maria Inês. Era possuidor de um dos três ou quatro automóveis, que havia na vila. É bom lembrar que estávamos na 1ª metade dos anos 40! Eu nasci em em 31-12-1934, à meia noite menos 10 minutos.

A fazer esquina com o então Largo do Rossio, hoje Largo da Capela, a loja do Srº João Cachim. Um senhor bem constituído e muito paciente, até quando lhe iam pedir um rabo de bacalhau, para curar um filho(a) "algado". Era casado com a Srª Maria Pinto, mais frenética e pai do Engº. José Manuel Cachim e da porfª Maria Sílvia. O estabelecimento era de vinhos e mercearia. Vinha gente de muitos lados, inclusivamente, dos Moitinhos e Vale de Ílhavo, aviar-se. Muitas pessoas lá deixavam as bicicletas, enquanto tratavam de outros assuntos. Mais trabalho para a Palmirinha, que as arrumava A loja do Sr. João Cachim, era um ponto de encontro de toda a gente. Recordo o Sr. Padre Ângelo, que lá passava muitas horas, agarrado ao balcão e respirando com a ajuda duma bomba. Tinha aquilo a que nós chamavamos de flato. O Sr. João Cachim ouvia-o com toda a paciência, sempre com uma das mãos a fazer de “tromba de elefante”. Note-se que o Sr. Padre Ângelo, capelão militar na 1ª Grande Guerra, já ia a milhas de distância, quando foi anunciado o fim deste terrível conflito. O rés-do-chão do Palacete Cartaxo, será sempre conhecido como a loja do Sr. João Cachim.

Havia depois uma pequena mercearia, que eu mal recordo, das Agualuzas. Tinha na frente da casa, a palavra “Habilitada”, em bonitos azulejos azuis e que eu só compreendi o significado, já moça feita.

Depois estava a loja das Cardosas, com bonitas peças da Vista Alegre. Lembro-me de ver à porta, o Sr. Prior Cardoso, alto, magro e com o cabelo todo branquinho. Era irmão do proprietário, Sr Zezinho Pereira. Cunhado da D. Leonilde da Velha (morava mesmo em frente), a célebre bordadeira que deixou trabalhos por muitas partes do mundo.

Um pouco acima, uma pequena loja de tecidos e outros panos da Srª Deolinda Marta. Senhora muito bondosa e engraçada. Avó da da madrinha do meu neto mais novo, José Alexandre: a nossa amiga Fatinha, professora.

A fazer esquina com a rua da Fontoura, a loja da Srª Micas Guincha. Lá vendia fazendas e outros tecidos. Enganava a sua bondade, com um aspecto mais ou menos ríspido.

Depois a casa do Sr. António Marnoto. Vendia tecidos e fazia feiras. Usava o chapéu posto de tal modo, que cobria a orelha, desafiando as leis da gravidade.

Mesmo no fim da rua, a taberna e mercearia do Sr. Topete, tio do nosso estimado amigo prof. Reinaldo Topete.

Regressando ao início da rua e caminhando pelo lado direito e a fazer esquina com a rua de Camões, ficava o Sr. Joaquim. Vendia artigos eléctricos e fazia consertos dentro da sua área.

No mesmo edifício, a ourivesaria do Sr. Bagão, encostada à barbearia do Sr. Cândido, que ainda está entre nós e com saúde (20-06-15)

Na casa encostada, com uma grande montra, funcionava a marcenaria do Sr. Machado, que se vangloriava de ser um exímio ciclista. Um dia pediu à esposa para lhe estrelar um ovo, enquanto ele ia à Figueira! Será que é anedota? Acredito que sim.

Encostado, ficava o famoso Café Cândido. Lá afluiam rapazes dos lugares mais longínquos, para disputarem os jogos de bilhar. Era o único café que possuía a mesa e respectivos acessórios. Parece que mais tarde, também o Café Tamar, hoje o Ilhavense, possuía esses apetrechos.

Depois do beco, conhecido por Manguinha, a farmácia Cunha, hoje Senos. No mesmo edifício, uma pequena loja de revistas, discos e cassetes. Era dum senhor o João "Passarinho". Constava-se que, por noite dentro, exibiria filmes de certa forma arrojados, para clientes mais ou menos fixos.

A seguir, a taberna da Ti Teresa. O marido, o Srº, Zé Pequeno, alto e forte, sempre a assobiar “para dentro”, percorria o beco da farmácia Diniz Gomes, tudo cheio de vezes ao dia. Na última casa do beco da farmácia Diniz Gomes, tinham um armazém. Hoje, é a sede da Confraria do Bacalhau, antes, ensaio da Música Nova.

Depois e a fazer esquina com um pequeno beco sem saída, a barbearia do Srº Raul e logo de seguida, tinha a casa aberta o Srº Rialó, consertando sapatos. Era casado com uma Grila. Ele não era de cá.No mesmo edifício, a minúscula joalharia do Srº Ângelo Ramalheira. Neste edifício morava uma senhora pequenina, de vestes pretas, compridas, a Srª D.Raquel. Eu era muito pequena, mas lembro-me de a ver sempre a varrer a rua, em frente à casa. Não sei, mas parece-me que era familiar dos Cunhas da farmácia.

Depois um beco sem saída, outro beco que vai fazer parte dos Sete Carris e a fazer esquina com ele, a farmácia Diniz Gomes. O seu proprietário, Srº Diniz Gomes, homem muito culto. Escreveu vários livros sobre a nossa Terra, como "Costumes e Gente de Ílhavo" (2 edicões esgotadas). Não era de muitas brincadeiras. A minha mãe contava que um dia mandaram um rapazinho comprar alcaçuz. Ele foi sempre repetindo o esquisito nome para não se esquecer. Só que, quando chegou à farmácia, pediu alçacus. Foi o fim do mundo. Foi um bom Presidente da Câmara, o Sr. Diniz. 

Umas casas à frente a Viela da Pinta. A fazer esquina, do lado esquerdo, a loja de fazendas da Srª Rosa Brinco.

Para cima e a fazer esquina com o beco então chamado do Prof. Guilhermino, uma espécie de armazém de cal churra e em pedra, da Ti Franjoa. Na salinha da frente dava doutrina a filha, Srª Conceição. Era muito alegre, solteira e "filha de Maria".

Do outro lado do beco, a sapataria do Srº Guilherme Marques, pai do prof. João Marques Ramalheira (Guilhermino) e avô do prof. Guilhermino e do João Aníbal. Assobiavam, ao desafio, o Srº Guilherme e os muitos canários que enfeitavam a sala. E aqui acabavam os estabelecimentos comerciais da minha rua.

Porém, não posso deixar de mencionar a minúscula mercearia do Srº Almendral, entre a casa do Srº António Marnoto e do Srº Topete, no outro lado da rua, mais ou menos a meio. O Srº Almendral era espanhol sem nunca ter perdido o seu sotaque e apareceu por cá a vender miudezas, num caixotinho, pendurado ao pescoço. Casou e foi pai dum único filho: o célebre Doutor José Luís. Muito introvertido, foi muitas vezes “castigado” por certos alunos. Não posso deixar de mencionar o António Matias, meu colega de turma. Tudo o que ele fazia, tinha graça e agia sem maldade. O Dr. Zé Luís, foi meu professor de Fisco-Química, no colégio de Ílhavo. Um bom docente, que eu recordo com saudade.

Agora que já “inventariei” todo o comércio que havia nos anos 40, tendo algum resistido ao tempo, mantendo-se até mais tarde, volto ao princípio.

O piso de macadame da Rua Direita, foi substituído pelo paralelipipedo, devia eu ter 9-10 anos. Hoje tenho 80, por isso há 70 anos, mais ou menos. Para recordação mantenho no meu pátio, alguns paralelos desse tempo, a suportar vasos. Depois dos trabalhadores acabarem o serviço diário, lá íamos nós, depois da ceia, fazer castelos, barcos e o que a nossa imaginação nos impunha. Éramos um grupo grande de crianças: eu, a Glorinha, a minha prima Maria Teresa, a Célia Parada, a Raquel Bairrada, a São do "Guarda", a Maria Irene Lau, o Henrique, o Zé Júlio Mangueiro e outros Parece que ainda hoje sinto a humidade daquela areia grossa, onde os paralelos eram assentes. Saudades da minha rua, por quê?

Porque havia gente, muita gente, conversadeira, às portas das lojas e nem só. Dos Sete Carris e de outros becos, vinham as pessoas sentar-se nos passeios, especialmente aos domingos. Vendiam-se tremoços e pevides.

Os pregões eram constantes:

Sardinha da nossa Costa! Comprem que náo há mais nenhum lanço. (Quantas vezes mentiam, só para venderem). Havia muitas peixeiras.

Olha a “cra-cravoeira”! Sacos com carvão já pesado e transportado num carrinho de mão.

Galeota! E lá a vendiam fazendo a “malga”, unindo o dedo indicador ao polegar e a cova feita, era enchida com aqueles minúsculos peixinhos. Lembro-me duma cena passada com uma senhora de fora que, à pergunta da peixeira de quantas "malgas" queria, respondeu aterrorizada: oh minha senhora, uma até é muita; é só para mim.

Olha a “tramoceira”! A Arminda; vinha das Moitas e já tinha as freguesas certas

Quem quer comprar camarinhas! (Troque as suas pernas pelas minhas). Respondiam as crianças àquelas criaturinhas, pequenas, de preto, com um chapéuzinho característico da zona de Mira e que servia de rodilha para aguentar aquele açafate de verga, com uma toalha, onde repousavam aquelas bolinhas brancas e brilhantes.

Lá vinha o Joãozinho Monge, quase cego, com o seu carro de mão, onde transportava, geralmente, carvão. Era muito educado, com alguma deficiência corporal e que satisfazia os pedidos dos miúdos, para que tocasse com as mãos que punha em concha. Aparecia também muito por aqui o Joãozinho Evangelista, cujo prazer era beijar os sapatos de verniz que se usavam muito na altura. Era " botadinho à boa parte" e não fazia mal a ninguém. Estou falando de algumas pessoas típicas da minha rua.

Lembro-me do Manel Ceguinho, aqui da segunda casa do Pedaço. Atira-me ao ar Manéuzinho! E lá pegava em nós, fazendo-nos a vontade.

Outra figura que enriquecia a nossa rua: o Benjamim. Um adolescente, quase cego, que vinha agarrado à mãe, uma senhora cujas feições acusavam a vida árdua que levava. Vinham da Lavandeira entregar, às freguesas, pequenos molhos de agulhas, mais ou menos de um metro de altura, atadas com um fio. Vinham de tal maneira empoleiradas que, se lhes punhamos a mão, ficavam por metade. Analfabetos, mas sabidos! Também passava muitas vezes por esta rua o Antoninho Espiga a caminho de Vale de Ílhavo, onde ia pedir às casas dos lavradores. Sempre que avistava os proprietários ou com os aventais dobrados ou qualquer outro sinal seu conhecido, fugia a sete pés, dizendo: raspa-te que é côdea. Nestas circunstâncias mais valia ouvir "vai com Deus" que era usual dizer-se, quando não se dava esmola.

E que dizer dos Carnavais? Muitas das casas tinham passeios corridos, que se enchiam de mulheres, para ver passar os gabões, oriundos de Vale de Ílhavo, com molhos de Ruda que esfregavam na cara das pessoas. Que cheiro horrível! Lembro-me de, quando era pequenina, sentada ao colo da minha mãe, a tremer de medo e o Srº Guilherme (pai do prof. Guilhermino), pedir àquelas medonhas figuras, que não me metessem medo, que eu era pequenina. Estávamos sentadas no seu passeio e parece que o estou a ouvir! E já lá vão os seus 75 anos.

Não havia corsos, mas havia muita alegria na minha rua. O homem que trazia escondido um bacio com vinho branco e um bocado de chouriça preta dentro e que, com arte, tirava debaixo das saias compridas, que as mulheres usavam, dizendo: suas porcas! Algumas afinavam mesmo. Mais tarde veio o Srº Horácio Rato. Homem simpático e muito engraçado, marítimo de profissão. Trazia um carrinho com muitos canudinhos pendurados, feitos de canas e tapados com uma pequena rolha. Além de tudo, era muito habilidoso. Esses tubinhos vinham cheios de sebo de boi, apregoando: Olhem a pomada que cura tudo! E então punha-se a enunciar todos os males do corpo. Havia sempre quem interagisse com ele. Lá vinha a Ti Renestina (Hernestina) da Capela, de mangas arregaçadas, para que ele a esfregasse. E, quando isso acontecia, era de se tapar o nariz, tal era o odor. Mas ela colaborava: sim, meu menino, que já me sinto melhor! Que rica pomada!

Outros dos pregões: Cá está o homem dos pirolitos! Cinco por meio tostão! E aqueles pirolitos, hoje chupa-chupa, lá vinham espetados numa boneca de palha, no cimo dum cabo de madeira. Eram bons, doces, mas não tão bons como os “ratinhos” da loja do Srº Almendral.

Também no Largo do Rossio era presença assídua, nesta altura do Carnaval, o Sócabôca (só com a boca). Um homem de idade mais ou menos indefinida que vestia uma rambana e um sueste e trazia uma cana ou pau fino, com um fio em cuja extremidade prendia um figo passado. E em jeito de quem estava a pescar, lá ia advertindo os garotos que o rodeavam: "é só ca boca!" Quantos saltos davam as crianças para apanhar um figo. Para os mais jovens esclareço que a rambana era uma espécie de casaco comprido, oleado, feito de pano cru (tipo pano de lençol, grosseiro) ao qual se davam vários banhos de óleo para o impermeabilizar. O sueste era um chapéu do mesmo oleado com a particularidade de ter a aba posterior muito larga e comprida, a fim de proteger o pescoço de quem o usava, isto é, os bacalhoeiros.

Também na altura do Carnaval, vinham as cegadas. Dentro duma barraca de pano, sem tecto e com uma entrada, actuavam sempre um polícia, uma queixosa e um capitão. Recordo a letra duns versos com uma música bonita, que lastimo não a poder transcrever. Então era assim:

Senhor comandante, como passou? Venho fazer queixa dum rapaz que me enganou.

Naquele tempo rapaz que "devesse casamento" a uma moça e não quisesse cumprir o seu dever, era condenado a fazer sete viagens ao bacalhau, ou seja, sete anos, isto se a memória não me atraiçoa.

A competir com as cegadas, que arrastavam multidões, apareciam as comédias, onde a figura principal era uma cabrinha que, com grande esforço, subia uma pequena escada e se mantinha com as quatro patinhas unidas, no último degrau, com uma superfície muito limitada. Recordo-me de ter muita pena da cabrinha e de pedir dinheiro para pôr no prato das esmolas. Era gente muito pobre! Tivesse muito ou pouco dinheiro, a minha mãe colaborava sempre e, quando os factos se proporcionavam, transmitia-nos todos os valores que deviam prevalecer numa pessoa. Querida e saudosa mãe! O que sou e como sou, a si o devo.

As recordações assaltam-me em torrente, competindo com o pensamento. E lá vai:

O carteiro da minha rua, era o Srº Carlinhos Valério. Figura muito típica, baixinho, gordo, com uma capa larga, até aos pés, boné com pala, ambos com uma corneta de metal, o logotipo dos CTT. Segurava numa mão uma pesada mala de couro e na outra, um molho de cartas, já escolhidas. Era hábito juntármo-nos perto dele, a perguntar se não levava uma carta para a mãe. Zaz! Esta era a resposta. E lá ficávamos a saber o peso do molho das cartas. Tenho a impressão que uma vez também fui contemplada com esse gesto. Bem feito; digo hoje. Não lhe dávamos o respectivo valor. A nossa pouca idade não oferecia discernimento para tal. As casas não tinham número de polícia. Mas nunca uma carta entrava em casa errada!

Numa certa altura do ano, penso que nas alturas da Páscoa, faziam-se as Ladaínhas. Um padre à frente duma multidão de pessoas, muitas beatas e filhas de Maria, entoando as tais Ladaínhas. Iam para Vale de Ílhavo, abençoar os campos e afugentar os demónios, que andam no mundo, para atormentar as almas. Era de madrugada. Será que algum demónio desertou? Se calhar…

Também de madrugada vinham dos lados de Cimo de Vila, grandes magotes de raparigas, cantando. Iam para a apanha da chicória. De Verão, usavam umas meias sem pés, para  que o Sol não lhes escurecesse as pernas. Estavam em moda, as pernas brancas. Como era pequena, poucas vezes vi estas pessoas. Ainda era de noite, mas tenho nos ouvidos o seu cantar.

Lembro também as padeiras de Vale de Ílhavo. Chegavam, ainda de manhã cedo, à Rua Direita. Muito passaram estas criaturas! Não havia elecrticidade no trajecto que faziam diariamente. Quando o luar se negava a aparecer, tinham que inventar qualquer coisa que lhes fornecesse alguma luz, nem que fosse para se desviarem das pedras e covas do caminho que, com as chuvas, eram poças. E então lá vinham elas com um pequeno caco, lama e carboreto que incendiavam numa das mãos. A mim metia-me uma impressão do caraças (desculpem-me) por ver uma mão a dar luz! Só apagavam esta luz, quando chegavam aqui ao pé da loja do Srº João Cachim, onde havia uma lâmpada. A combinação do carbono com metalóides deixa um cheiro muito estranho no ar.

São todas estas situações, que me fazem ter "Saudades da minha rua". Também no tempo da 2ª Guerra Mundial, a rua se enchia de gente pelos piores motivos. Grandes bichas se formavam à porta da padaria Durão. Com as senhas nas mãos, aí aguardavam pela venda do pão e da boroa (amarela que até cegava), de acordo com o número que vinha nesses pequenos papéis e que se referiam ao número de pessoas de casa. A manter a ordem, a GNR armada até aos ossos. De vez em quando e, agora, acredito que por malvadez, mandavam virar a fila. Os 1ºs passariam a ser os últimos e vice-versa. O meu irmão mais velho do que eu cinco anos, o Armindo Júlio, é que ia para lá com muita pena da minha mãe que ficava a cuidar do mais novo, o Eduardo Manuel. Eu fiz a instrução primária durante o tempo da guerra, a ouvir o barulho dos aviões a passarem por cima de nós, com muita pouca noção do que se passava. Em paz esteja quem nos livrou deste terrível delito, jogando com um pau de 2 bicos. Nem que fosse só com um! Todos estes anos tornaram os produtos muito escassos e racionados. De vez em quando vinha a notícia que em tal parte assim, assim, estavam a vender 2 Kg de batatas por pessoa, sem senha. E lá ia a minha mãe e outras amigas a Aveiro, a pé. Assim conseguiu arranjar uma arroba delas, que ofereceu à minha saudosa professora da primária, D. Georgina Ramalheira, filha do Sr. Guilherme, depois de fazer o exame da 4ª classe. “Foi a melhor prenda, que recebi, Marquinhas”! Respondeu a senhora toda contente.

Nós morámos trinta e sete anos, até 1981, no 1º andar do prédio que fica em frente do Illiabum Clube e Segurança Social, aqui próximo da casa que comprámos e que foi da prof.ª D.Vetúria Ramalheira. No rés-do-chão, morava o Srº.Marcos Catarino (Canholas) a esposa e a filha Maria Glória, que me considera como irmã, fruto de amizade que nos une. O passeio que ainda hoje conserva, era o mesmo, onde se sentavam as pessoas vindas dos Sete Carris. Entre elas a Ti Ana Escudeira, alta, forte, voz de acordo com a sua constituição física. Como muitas mulheres das suas idades, usavam saia rodada, até aos pés e avental a acompanhar.

Como disse atrás, vivia-se muito limitado. O café, uma espécie de café, era adoçado com minusculos rebuçados, não sei de quê. Não havia o que comprar e o pouco que havia, era à base de senhas de racionamento. Os produtos eram chamados da tabela. Uma cena destas vivêmo-lo em Berlim comunista, eu, a minha filha Ana Cristina, a Prof.ª Nelinha Ré e o nosso amigo Padre missionário Rui Prates, alentejano, depois de termos conseguido passar o muro, pouco antes deste cair. Lá fomos nós com 3 senhas numeradas e 2 ou 3 moedas. A minha filha, mais ou menos 12 anos, ficou perplexa ao ver o comprimento das filas à porta dumas lojecas, apenas para comprarem uma peça para os automóveis a cairem de velhos. Pegando na palavra "tabela" até o pano de lençol possuía em todo o seu comprimento, um fiozinho vermelho.Quem não gostava disso só tinha que o retirar. Mais tarde, ainda cheguei a picar os dedos para ajudar a minha mãe, que não gostava da designação, a retirá-lo. Mas voltando à Ti Ana Escudeira, já nessa altura havia os privilegiados.E então era ver sair das saias da dita, pacotinhos de açucar, de arroz, garrafinhas de azeite “pitró”, etc., que eram entregues à socapa, aos tais senhores. Interessantes eram os pacotes de papel pardo às risquinhas rosa e cujo fundo quadrado era colado com uma colherada de cimento. Havia também os cartuchos em forma de cones. Nem o melhor mágico faria melhor que a ti Ana. Para camuflar este negócio proibido, a candonga, dois ou três frangos trazidos das feiras, em cima dum cesto, ao colo. E que não botassem faladura. Era tudo feito à chucha calada. Quando a transacção acabava, quase sempre pela noite dentro, não era raro reacender-se uma discussão, com os vizinhos dos Sete Carris, que não tinha ficado resolvida a tempo e horas. Estávamos no ano de 1945. Como se fosse hoje, lembro-me de estar a fazer os trabalhos da escola. A certa altura, ouvi um silvo muito forte e vim à janela desse 1º andar, da casa da Ruiva, como era conhecida. Debaixo dos meus olhos, passava uma mota, muito grande, com um “carrinho” agarrado, portanto um "side-car" e que eu nunca tinha visto. Nele vinha sentado um militar, todo emproado e que, pelos amarelos que cobriam a sua farda, devia ser alguém importante. E era! Era o mensageiro que se dirigia à Câmara Municipal e que trazia a boa-nova. Num instante a minha rua se encheu de gente. Acabou a guerra! Acabou a guerra! De todos os lados vinha gente que, não só encheu a rua, como a Praça Alexandre da Conceição. Apareceu a música e as conversas eram mais alegres. Ao recordar estes factos que me marcaram até hoje, apetece-me repetir: "Saudades da minha rua!"

Há sempre qualquer coisa que nos fica na memória: o Café Central estava apinhado de gente, vestida a rigor. Os vidros embaciados, devido à respiração Cada pessoa vestiu as melhores vestes que tinha. Rompendo, através da multidão, surge a Maria Vetúria (Cigana). Faz das mãos concha e com a cara encostada à vidraça, descortina o senhor que estava acompanhado pela Ti Joana Escudeira, lavadeira de casas. Ele de fraque ela com mantilha preta, até aos joelhos. E vai daí, a Maria Vetúria Cigana, grita: Eh senhor Manel Vinagre, a sua mulher anda à sua “precura”! A resposta não se fez esperar: uma taça de espumante contra a montra, onde vigiava a entrusa. Não sei quem apanhou a turra, quando ela recuou com o susto.

Saudades da minha rua e dos seus sons!

A corneta da bicicleta do padeiro, o Sr. Manel Rito cuja cesta vinha “escarranjada” na roda traseira. Lá vinham os passarinhos, os yó-yós, pinhas, espanhóis, etc., que faziam a delícia das crianças. Bom pão que não havia no tempo da guerra. O chiar das rodas dos carros de bois dos Pachachos, dos Adões e de outros lavradores de Cimo de Vila. Depois de deixarem os cereais lá para a zona do Urjal, voltavam para suas casas, já tarde. E, à socapa, lá nos sentávamos nas traseiras dos carros. O pior era quando eles iam ao pino e éramos descobertas. Era cada vergastada, que até os tamancos de quem os usava, saltavam dos pés. Raríssimo, quando o lavrador nos mandava subir. E lá íamos nós até ao Cruzeiro, todas “cheias de nove horas”. O grupo era sempre o mesmo: eu, Maria Helena, a Glorinha, a São do "Guarda", a Raquel Bairrada, a Célia Parada e outras que apareciam lá dos becos. Nesse tempo os dias pareciam mais longos. O Sol não tinha pressa de trocar de “quarto” com a Lua.

Saudades da minha Rua!

No primeiro sábado de Setembro, esta rua cheirava à ria devido ao junco com que era atapetada, até à Senhora do Pranto. Tudo para receber o Senhor Jesus dos Navegantes que, do alto da Sua cruz (feita pelo meu bisavô materno, Julião da Conceição, irmão do poeta e Engº. Alexandre da Conceição), parecia abençoar todo o povo que ladeava a rua e que gritava, quando tinham que baixar O Senhor, para O desviar dos fios eléctricos, que atravessavam a rua de um lado ao outro. Hoje o Senhor Jesus já não vai até à Senhora do Pranto. E a procissão daquela Senhora vem da Capela e, ao chegar à rua da Fontoura, volta para cima. As pessoas que moram para baixo até à 109, são assim discriminadas. Nunca tal tinha acontecido. E a procissão das velas? Leva o mesmo caminho. As velas postas à janelas, ficaram a derreter. Lágrimas brancas, certamente de desgosto.

Saudade da minha rua e dos seus sons

E o que dizer do chilrear das andorinhas que habitavam os beirais do palacete Cartaxo, por cima da loja do Srº João Cachim? Dezenas de ninhos que enchiam aqueles suportes, talhados quase a propósito, pelo mestre que o construiu há algumas centenas de anos. Hoje, não há andorinhas na minha rua. De luto aliviado (peito branco) cruzavam os céus, com toda a sua elegância. Os andorinhões (os pedreiros) querem substituí-las, mas não tem nada a ver. Há anos que, em Março e, às vezes, em Fevereiro, conforme as condições do tempo, aparece uma andorinha no meu pátio. Vem com o mesmo luto que, segundo uma lenda, o usa desde que assistiu à morte de Jesus Cristo, na cruz. No seu chilrear, parece dizer-me que, enquanto houver uma andorinha, não acaba a Primavera. Obrigada, amiga, pela tua mensagem, que me alivia um pouco das "Saudades da minha rua".

 

24-08-2015 Maria Helena Matias Pessoa (80 anos)



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